Derry
“Pode uma cidade inteira ser
assombrada?
Assombrada como algumas casas em teoria são?
Não uma única construção nessa cidade, nem a esquina de uma única rua,
nem uma única quadra de basquete em um único parque, (…), não só uma área… mas tudo. A cidade toda.
Isso é possível?”
Derry, no Maine, é uma cidade
assombrada. A criatura que vive em Derry caiu naquele pedaço de mundo quando a
Terra ainda era jovem e a cidade cresceu em volta do lar da Coisa. Em intervalos de aproximados 25
anos, a cidade sofre um aumento considerável nos casos de violência, começando
e culminando em um grande desastre.
Essa é uma história sobre Derry,
um lugar onde as pessoas não se assustam com coisas terríveis, não se contém em
nome da moral e da ética, não se incomodam com cenas de violência a um metro de
distância. Um lugar onde as pessoas não gostam de falar do passado, porque têm
medo da própria culpa.
O Clube dos Otários
Conhecemos os personagens
principais durante o verão de 1958, logo após o início das férias escolares.
Bill Denbrough está tentando se
acostumar com a nova realidade de sua família após a morte de seu irmão mais
novo, no outono de 1957. George Denbrough era um garoto de 6 anos que, no dia
em que morreu, tinha saído para brincar com um barco de papel que Bill tinha
feito para ele. Apenas alguns minutos depois, ele estava morto. Seu corpo
mutilado foi encontrado ao lado de um bueiro.
Não demorou muito para que
outras crianças de Derry começassem a desaparecer e algumas serem encontradas
mortas. A cidade entrou em alerta e instituiu um toque de recolher. Parecia
claro que havia alguma coisa ou alguém matando crianças naquela região.
Apesar de George não ter sido diretamente ligado a esses desaparecimentos, que
aumentaram no período entre sua morte até o fatídico verão do ano seguinte,
Bill sentia que sim, seu irmão tinha sido a primeira vítima.
Ao lado de seus amigos Eddie
Kapsbrak, Richie Tozzier, Stan Uris, Ben Hanscon, Mike Hanlon e Beverly Marsh,
ele percebe que os assassinatos e desaparecimentos não são obra de um serial killer ou um maluco qualquer. Há
alguma coisa podre em Derry, algo que
apenas as crianças entendem e que os
adultos sentem da mesma forma que sentem o vento, a água, a terra. É justamente
essa naturalidade com que os adultos
de Derry encaram os estranhos eventos que cercam a história da cidade que os
torna impotentes diante dessa ameaça.
O nome “Clube dos Otários” não
é por acaso. Cada uma deles representa aquelas crianças excluídas e diferentes
que todos nós conhecemos – ou fomos – na escola: Bill, gago; Eddie, asmático; Ben,
gordo; Richie, nerd; Stan, judeu; Mike, negro; Bev, piranha. É impossível não
se identificar com um deles, não se sentir
como um deles.
A história dessas crianças,
mais do que a versão delas adultas, que conhecemos no verão de 1985, é o
elemento mais poderoso desse livro. A amizade deles, o amor, a lealdade e,
principalmente, a coragem e inocência
da infância são o que tornam It um
livro mágico.
As sete crianças enfrentam a Coisa pela primeira vez naquele verão,
nos túneis debaixo da cidade. Porém, alguma coisa dá errado e elas fazem uma
promessa de voltar e terminar o serviço, quando o ciclo de 25 anos se fechasse
e a Coisa voltasse a aterrorizar
Derry.
A Coisa quer vingança e sai na frente das crianças, pois ela sabe algo que elas só descobrirão 27 anos mais tarde: os adultos trocam a inocência fácil da infância pela rigidez cética da vida adulta.
A Coisa quer vingança e sai na frente das crianças, pois ela sabe algo que elas só descobrirão 27 anos mais tarde: os adultos trocam a inocência fácil da infância pela rigidez cética da vida adulta.
O livro
Vi em algumas resenhas pessoas reclamarem
da prolixidade de Stephen King nesse livro. Isso é relativo. De fato, o livro é
muito longo. A edição de 2014 da Suma
das Letras tem 1103 páginas. Alguns podem achar que são páginas demais. A adaptação
cinematográfica de 1990 claramente achou-as desnecessárias. Mas, ainda que possamos
considera-las demais, discordo que
não sejam pertinentes.
A narração se divide em pelo
menos duas linhas temporais, o verão de 1958 e o verão de 1985. Não há, no
entanto, uma linha rígida entre os dois períodos, levando a história do ponto A
ao ponto B. É mais como se os dois períodos ocorressem paralelamente.
Quando os personagens se
reencontram 27 anos depois do primeiro confronto com a Coisa, eles não se lembram do que aconteceu no verão de 1958. Eles
apenas sabem que devem estar lá e
fazer o que prometeram fazer.
Conforme as lembranças chegam, acompanhamos passado e presente, numa estrutura de
suspense que prende o leitor do início ao fim.
Há também outros cortes na
narrativa, através de trechos do diário de um dos personagens, Mike Hanlon, que
contará partes importantes da história da cidade. São passagens em que podemos
ver que Derry não é uma cidade normal: a explosão na Siderúrgica Kitchener, o
incêndio no Black Spot, o assassinato da gangue Bradley, a enchente no outono
de 1957.
Casos expressivos que mostram o
quanto Derry não é apenas uma cidade que convive silenciosamente com a
violência, mas também está acostumada com as tragédias, como se elas
acontecessem porque Derry é assim e essa é a única
explicação necessária.
Não, não são trechos relevantes
para o enredo central, mas são importantes para dar o clima de suspense e
terror do livro, e para contextualizar a relação simbiótica de Derry, a cidade
assombrada, e a Coisa, o ser sobrenatural que a assombra.
Outro momento em que a
prolixidade do autor pode ser um problema para alguns está na construção dos
personagens. Ao mesmo tempo em que para haver identificação é preciso conhecer
os personagens e suas histórias, Stephen King vai além do necessário ao tentar dar
profundidade aos personagens secundários. Por exemplo, não faz diferença saber
que a melhor amiga da Beverly-adulta é uma feminista que vive da pensão do
ex-marido ou que Tom, marido de Beverly, teve uma infância difícil após a morte
do pai.
Isso é algo que também aparece
em outros livros do autor, como O
Pistoleiro, com uma aeromoça desconfiada, ou em A escolha dos três, com dois policiais que estavam no lugar errado,
na hora errada. Ambos os livros da série A
Torre Negra.
Há alguns pontos, porém, mais
complicados que a necessidade de Stephen King de contextualizar, literalmente,
tudo. Sem querer dar spoiler, vou
apenas deixar isso aqui e seguir em frente: a cena em que Beverly tem uma idéia para tirar ela e os amigos dos
túneis é um tanto… despropositada. Sério que não tinha outro jeito, Stephen
King? Sério mesmo?
O tamanho do livro assusta. Não
recomendo para quem não leu outras obras do autor. Aliás, para iniciantes,
recomendo os livros de contos, especialmente Sombras da noite que foi a minha porta de entrada para a escrita de
Stephen King, de onde não quero sair nunca mais. Outra recomendação é o livro
de memórias e dicas de escrita, Sobre a
escrita.
A Coisa é o melhor e pior monstro ao mesmo tempo, pois é aquilo de
que você tem medo. E dá medo de verdade. Ela
tem várias formas e muitos truques. Ela
é capaz de enxergar o seu maior medo e usar contra você. Não é aleatória a
forma com a qual é mais conhecida, como o icônico Pennywise, o Palhaço. Quantos
de nós têm medo de palhaço? Quantas crianças choram ao ver um palhaço?
A escrita de Stephen King é
maravilhosa. Ao mesmo tempo ele consegue criar um ambiente tenso, um contexto
completo, uma criatura assustadora, personagens realistas e uma história sobre
amizade que superou uma das minhas referências no assunto, não por acaso o
filme Conta comigo, baseado no conto
O corpo do próprio King (presente no
livro As quatro estações).
It, a Coisa é um livro sobre a fé, não em um ser cósmico onisciente
e atemporal, mas a fé cega e pura das crianças em Papai Noel, Coelho da Páscoa
e Fada do Dente. E, inevitavelmente, no Monstro-Debaixo-Da-Cama.
“Eu amava vocês todos, vocês sabem.
Eu amava vocês tanto.”
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