quinta-feira, 11 de junho de 2020

E o vento levou... - Margaret Mitchell

Olá você! Sei que faz muito tempo, mas voltei com resenha nova. Uma que venho tentando descobrir como fazer desde janeiro e hoje, finalmente, acordei disposta a escrever sobre isso. Vamos lá?

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Eu li "E o vento levou..." e assisti o filme em seguida, no começo desse ano. Dois volumes de mais de 500 páginas. Comecei e automaticamente estava amando. Bem escrito (e vou incluir a tradutora aqui), história envolvente. Se passa entre o período de 1861 e 1873, durante a Guerra Civil americana e o período de Reconstrução pelo qual o sul do país teve que passar após a derrota dos Confederados.
Não sei se alguém aqui tem uma lembrança afetiva dela, mas Scarlett O'Hara era uma pessoa horrível, chata, mau caráter.
Primeiro, queria seduzir todos os homens da cidade, apenas para colecioná-los. Segundo, passou a vida inteira desejando Ashley, que era casado. Terceiro, passou a vida inteira odiando Melanie, a esposa de Ashley, e a única amiga que jamais teve. Quarto, se casa com Charles, irmão de Melanie, para se vingar do Ashley e ficar próxima dele. Depois, se casa com o noivo da irmã, para conseguir dinheiro para a fazenda. Ainda no tópico casamento, se casa com Rhett Butler, também pelo dinheiro. Quinto, lá para o meio do livro, contrata prisioneiros do Estado para fazer o trabalho braçal na sua marcenaria, e permitia que fossem tratados como escravos (os negros já haviam sido libertos a essa altura), torturados etc.
Ual, que mulher!
Mas você vai dizer "eram prisioneiros". Não é desculpa para mim. Se é para você, só posso discordar.
Muitos dizem que ela era uma mulher a frente de seu tempo, que sobreviveu lutando, enfrentou a sociedade conservadora da época, se tornou comerciantes (um escândalo a mulher ganhar mais que um homem). Porém, francamente, às custas de quê? Olha o currículo dessa mulher! O bom é que a autora, Margaret Mitchell não suaviza o quão terrível é a personagem e você vê toda a malícia, egoísmo e futilidade de Scarlatt desde a primeira página, até a última.
Rhett Butler era disparado meu personagem favorito, porque mesmo em um momento terrível, ele conseguia sobreviver de uma maneira que muitos dos bons homens confederados talvez não conseguissem, se não estivessem, sabe, lutando uma guerra perdida pela manutenção do seu estilo de vida: agropecuário e escravocrata. Basicamente, a economia do sul dos EUA em 1861 (quando começa a história, girava em torno do comércio de algodão, carne, outros produtos agropecuários, e escravos.
Porém, mesmo gostando do livro e mesmo querendo muito continuar a gostar do livro, logo no primeiro capítulo, eu já vi uma coisa que me fez pensar “hum, não sei se posso confiar nesse narrador”. Tem uma passagem em que dois irmãos amigos de Scarlett estão voltando para casa, montados em seus cavalos e conversando. Ao lado deles vem correndo, um de seus escravos, e é esse quem faz um comentário depreciando outro escravo por pertencer a uma família menos nobre, como a dele. Achei estranha essa comparação de valor entre um escravo de uma família nobre e um de uma família pobre, porque no fim, os dois estavam na mesma situação, certo?
Os escravos da família O’Hara eram bem tratados pela família. O Sr. Gerald O’Hara é descrito como um bom patrão, que faz a bondade de comprar a esposa e filha de seu escravo da casa, para que a família deste possa ficar junta. Raramente era obrigado a bater nos seus escravos. Portanto, é natural que esses escravos sejam leais a uma família tão boa. Mas quando os efeitos da guerra estão assolando Tara, e todos os outros escravos fugiram aproveitando-se da guerra, esses escravos leais, que ficaram com a família, se recusam a trabalhar na terra, porque não são como os escravos da senzala. E tem mais: os escravos fugidos são tratados pelos que ficaram como “traidores e ingratos”.
Basicamente, a sociedade da época tratava o negro com um selvagem que, sem a orientação e o trabalho para senhor branco, permaneceriam como bestas, e que era uma boa coisa a escravidão, por assim, eles seriam civilizados.
O livro passa bastante tempo descrevendo os efeitos dos primeiros anos de guerra na cidade de Atlanta, que se tornou uma das cidades sulistas mais importantes no período. É para lá que Scarlett vai quando se torna viúva pela primeira vez, morar com a cunhada, Melanie, esposa de Ashley (lembra que ela era apaixonada por ele?).
A descrição de como a cidade vai de um promissor e crescente centro comercial, com uma sociedade abastada, para uma vítima silenciosa à medida que a guerra se aproxima é impressionante. É de perder o fôlego e não tem como não temer pelos personagens de quem você acaba se apegando. Inclusive Scarlett e suas escolhas questionáveis. Melanie também se torna uma das minhas personagens favoritas, porque ela é boa e estável, enquanto sua cunhada (e secretamente rival) é má e caótica.
Enfim, os Confederados perdem a guerra, o norte proíbe que os cidadãos participem das eleições, os escravos são libertos, e o caos econômico e social se instala nessa sociedade. Primeiro, os brancos, ex-donos de escravos, ficam escandalizados porque os negros estão por toda parte, espalhados pelas ruas e se recusam a trabalhar! Ou isso, ou o fato de que os homens brancos se recusam a empregar quem antes eles escravizavam.
Mammy, uma das personagens mais conhecidas da história, vai para Atlanta ajudar sua senhora Scarlett (ela é liberta como os demais escravos, mas permanece com a família) e fica horrorizada com essa horda de vadios e vagabundos. Sabe aquela desconfiança com o narrador? Então, senti isso de novo aqui.
Todo mundo fala sobre o romance de Scarlett e Rhett. De fato, os dois protagonizam as melhores interações do livro. Ela mesquinha, ele, malandro. Porém, eu me recuso a trata-lo como um herói romântico. Tem descrições de promiscuidade, visitas frequentes ao bordel, crimes de todo tipo para passar pelo bloqueio imposto pelo Norte, enriquecimento ilícito, assassinato, e uma cena que me pareceu muito com estupro.
E como se não bastasse, lá pelo meio da história, com a situação humilhante pela quais o Sul tem passado, com os direitos ao voto vetado aos cidadãos de bem, e os negros sendo tratados como “aliados” pelos invasores do Norte; viu-se a necessidade de proteger as mulheres (e a pureza imaculada das virgens) dos negros selvagens. E criou-se a Ku Klux Klan: uma organização de bons cidadãos, heróis de uma pátria injustiçada.
Caso esteja se perguntando se essa passagem está no filme, eles ocultaram o nome da KKK, porque não queriam associar o filme à organização racista.
Foi nessa altura que para mim não tinha mais como continuar gostando do livro. Sim, passei por muitos trechos horríveis, mas sempre pensando “ah, mas está retratando uma época. As coisas eram assim mesmo. Não seria tão bom se amenizasse essas questões”. E tá, isso funcionou comigo por um tempo, mas desde que terminei essa leitura, em janeiro desse ano (parece uma eternidade), eu tenho pensado sobre isso.
A autora, Margaret Mitchell, era uma jornalista, branca, criada no sul. Ela recebeu um prêmio Pulitzer por esse livro, pois foi por muito tempo considerado importante retrato da Guerra Civil americana. E de fato é, embora hoje em dia, alguns historiadores apontem alguns erros. Mas fiquei pensando… sempre que ela quis falar sobre o comportamento dos negros libertos, ela usou a voz de outros negros. Sempre que ela levantou a questão da escravidão, ela usou a voz de escravos leais a suas famílias. E é aí que mora todo o perigo dessa história. Faz você acreditar que havia alguns negros, alguns de grande valor e lealdade, que viam a escravidão como algo bom para eles, algo que os civilizava e lhes concedia uma noção de valor?

Depois de meses tentando escrever essa resenha, finalmente consegui por causa de uma discussão iniciada pela HBO Max. O filme foi retirado temporariamente do catálogo do serviço de streaming, pois decidiram contextualizar melhor o filme, antes de exibi-lo para novos públicos. Muitas pessoas estão revoltadíssimas, achando que se trata de censura, de negação de uma realidade histórica. Eu discordo.
O filme é um dos mais importantes para a história do cinema. O papel de Mammy rendeu o Oscar de melhor atriz coadjuvante para Hattie McDaniel, primeira atriz negra a ganhar o prêmio.
Há quem interprete o filme como uma crítica à causa sulista e ao contexto da escravidão em si. E talvez seja. Mesmo porque Rhett Butler é o personagem que está constantemente criticando a causa, fazendo troça da situação das famílias nobres, criticando as atitudes de Scarlett e evidenciando as falhas morais da época.
Ainda assim, todo o ponto desse texto é: não vai fazer mal um pouco de contextualização histórica. Não sou a favor de banir o filme, nem "editar" o filme. Ele precisa existir tal como foi feito. E precisa ser assistido.

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[Atualização: estou estudando mais sobre o assunto, o filme e a história da autora Margaret Mitchell. Quando tiver mais a dizer, eu volto.]

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